Uma Comunidade Transformada pela Graça
Em anos recentes, uma frase intrigante nas atualizações de relacionamento em mídias sociais tem chamado a minha atenção: É complicado! Eu não tenho compreendido como interpretar exatamente essa frase ambígua. Eu imagino que ela pode descrever um relacionamento difícil ou talvez a incerteza de alguém sobre a natureza do relacionamento. Ao encontrarmos as histórias de nossos ancestrais do Antigo Testamento, é fácil imaginar que nossos ancestrais podem ter descrito o status do relacionamento de aliança deles com o Senhor como complicado.
A complicação desse relacionamento emergiu da realidade que a aliança estabelecida no Sinai era verdadeiramente um relacionamento bilateral (dois lados) entre Deus e o povo. Uma frase familiar da aliança, Eu serei seu Deus e vocês serão meu povo, demonstra a natureza mútua desse relacionamento. Se a aliança fosse meramente a responsabilidade somente do lado de Deus, nenhuma complicação teria emergido. Certamente, somente o Senhor tinha iniciado essa aliança pela graça. As pessoas não tinham parte no iniciar da aliança através das observações legais, o trabalho piedoso ou dons sacrificiais. Entretanto, a aliança insistia que a comunidade respondesse aos atos graciosos do Senhor através da indivisa lealdade a Deus.
As frases de abertura do Decálogo articulam esse relacionamento entre a graça iniciadora de Deus e o mandato de lealdade exclusiva: “Eu sou o Senhor, seu Deus, que o libertou da terra do Egito... Não tenha outros deuses além de mim” (Êxodo 20:2,3). Esse chamado foi repetido nas palavras do Shema (Deuteronômio 6:4-5): “Ouça, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, o Senhor é único! Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de toda a sua força” (itálicos utilizados para ênfase). No Código de Santidade, o mandato do Senhor para uma fidelidade de coração inteiro também é estendida ao nosso próximo: “Cada um ame o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor” (Levítico 19:18). Séculos mais tarde, Jesus confirmou que a totalidade da Torah e dos profetas foi construída sobre o mandato indivisível e fiel para amar a Deus e ao próximo (Mateus 20:34-40).
Encarando o Dilema
Dentro desse contexto do chamado de Deus para fidelidade não dividida, nossos ancestrais do Antigo Testamento encontraram a complicação do relacionamento da aliança. Como vários poderes religiosos, econômicos e políticos do dia prometiam aos nossos ancestrais ou bênção abundante na vida ou resgate da desgraça eminente, eles lutavam para colocar em prática uma consistente fidelidade da aliança. A fim de não apenas sobreviver, mas prosperar em suas famílias, campos e gado, eles se voltaram para os deuses populares da fertilidade de sua época, misturando as formas manipuladoras de adoração aos deuses da fertilidade com sua adoração ao Senhor que se recusava a ser manipulado ou coagido pelos adoradores. Em seu desejo de segurança, eles tentaram “conter” ou “domesticar” a presença do Senhor construindo ídolos.
Temendo que eles sucumbiriam aos ataques de seus inimigos, eles estabeleceram poderes políticos (reinado) para os liderarem nas batalhas e garantir seu futuro. Em seu desejo de se tornarem um “grande jogador” respeitado no mundo de sua época, eles formaram alianças com impérios e nações que prometiam sucesso e prosperidade às custas de sua fidelidade não dividida com o Senhor. Como se a infidelidade ao Deus que os resgatou não fosse suficiente, eles abandonaram a lealdade ao seu próximo se envolvendo em atos de opressão, injustiça e violência. O relacionamento de aliança com Deus e com o próximo corretamente ordenado, tornou-se distorcido, enfraquecido e finalmente despedaçado.
O relacionamento da aliança de fidelidade com todo o coração para com Deus e com o próximo estava no centro da identidade e do propósito da comunidade. Chamados e separados para serem instrumentos do Senhor de bênção vivificante, um reino de sacerdotes, uma nação santa, para o mundo (Gênesis 12:1-3; Êxodo 19:4-6), a contínua infidelidade a Deus e ao próximo colocou em risco sua distinta (santa) identidade e propósito no mundo. Como poderia um povo criado por Deus ser sacerdócio de Deus, uma bênção vivificante para o mundo fielmente, incorporar essa identidade se eles, na verdade, estavam incorporando deuses populares de fertilidade, ídolos construídos humanamente, reis fortemente armados e alianças para serviço pessoal? Eles podem ter se chamado de povo do Senhor, mas não poderia haver maior disparidade entre a fidelidade do Senhor e a infidelidade deles.
Há Esperança?
Ler as histórias do Antigo Testamento sobre esse relacionamento de aliança complicado é como os altos e baixos de uma montanha russa. Por um lado, grandes renovações religiosas ocorreram. Quem poderia esquecer o poderoso reavivamento liderado pelos profetas Elias e Eliseu onde os profetas de Baal foram obliterados ou as grandes reformas religiosas dos reis Jeú, Joás, Ezequias e Josias em que templos foram demolidos e altos foram arrasados? Em cada renovação, surgia a esperança de que a comunidade da aliança tinha finalmente se esforçado o suficiente, sido determinada o suficiente e se sacrificado o suficiente para se tornarem quem sempre confessaram ser: o povo do Senhor. Por outro lado, essas renovações foram consistentemente seguidas pela teimosia, infidelidade e falta de confiança do povo somente no Senhor. Parecia que não importava o quanto os profetas, reis e pessoas tentassem em seus esforços para mudar seus caminhos infiéis, as chamas ardentes da reforma sempre terminavam com brasas fumegantes do fracasso humano.
No meio da maior de todas as reformas retratadas no Antigo Testamento, o profeta Jeremias reconheceu que algo muito mais profundo estava em jogo do que as débeis tentativas das pessoas de se esforçarem mais, mudarem e renovarem seus caminhos. Concluindo que era tão impossível para o povo mudar seus hábitos quanto para um leopardo remover suas manchas ou um etíope sua pele, Jeremias anunciou que a infidelidade do povo ao Senhor—seu pecado—estava profundamente gravada em seus corações com uma ponta de diamante (13:23; 17:1). Parecia que o relacionamento da aliança estava fadado ao fracasso total.
Transformados pela Graça
Se alguém parar de ler a mensagem de Jeremias na parte das manchas do leopardo, da pele do etíope e da ponta de diamante, este só poderá concluir que o povo da aliança estava irremediavelmente viciado em sua infidelidade. Entretanto, Jeremias não para. A mesma graça divina que tinha “ido antes” chamando o casal sem filhos e sem terra[1] e que tinha estabelecido um relacionamento correto através da aliança no Sinai[2] não pararia tão cedo com o povo sendo entregue ao ciclo repetitivo da infidelidade da aliança. O Deus que havia chamado essa comunidade para amar de coração inteiro e com uma fidelidade não dividida não pararia de chamar. O Senhor que havia concebido e dado à luz ao povo pela graça também os transformaria pela graça para que eles pudessem, de fato, amar o Senhor com todo o seu coração e toda a sua alma, e toda a sua força.
Olhando além do dilema presente com otimismo da graça e da esperança de Deus, Jeremias imaginou um dia em que o próprio Senhor iria, pela graça, fazer o que as pessoas eram incapazes de fazer pelos seus fúteis esforços. O próprio Senhor escreveria a instrução divina (Torah) nas mentes das pessoas para que o Senhor, de fato, fosse seu Deus e eles fossem Seu povo (Jeremias 31:31-34). O profeta Ezequiel, contemporâneo de Jeremias, apegou-se à esperança da graça transformadora de Deus na qual o próprio Senhor os purificaria de seus ídolos viciantes, lhes daria um novo coração (mente) e colocaria o Espírito divino neles para que servissem fielmente ao Senhor e fossem de fato Seu povo e o Senhor seria o seu Deus (Ezequiel 36:25-28). Ezequiel chega a dizer que ao santificar (tornar santo) Seu povo, o Senhor santificaria (tornaria santo) Seu próprio nome diante dos olhos das nações (36:23).
Onde todas as tentativas humanas de evocar a fidelidade se mostram fúteis, a graça de Deus é abundante! Para nossos ancestrais bíblicos e todas as gerações subsequentes, a graça divina e santificadora que transforma foi, é e sempre será a única esperança para o povo de Deus se eles forem fiéis em amar o Senhor com todo o seu coração e amar o próximo como a eles mesmos. De fato, Aquele que chamou os nossos ancestrais e todas as gerações subsequentes para uma fidelidade não dividida, completa e inteira é Ele mesmo fiel e Ele o fará (veja 1 Tessalonissenses 5:23-24).
Timothy Green é deão da Escola de Teologia e do Ministério Cristão de Millard Reed e professor de Teologia do Antigo Testamento e Literatura na Universidade Nazarena de Trevecca em Nashville, Tennessee, EUA.
Holiness Today, Janeiro/Fevereiro de 2021