A Iniciativa de Deus Graça Preveniente e Expiação

A Iniciativa de Deus Graça Preveniente e Expiação

O termo “graça preveniente” não está na Bíblia. De fato, toda essa forma de falar de diferentes “graças”—“graça preveniente”, “graça salvadora”, “graça santificadora”—não é a forma como os autores bíblicos falam de graça. Então, de onde essa linguagem e fraseologia vêm?

A resposta historicamente é que foi o grande Agostinho quem mais influenciou na promoção dessa maneira de falar na igreja. E Agostinho, por sua vez, foi influenciado pelo platonismo. O grande filósofo neoplatonista, Plotino, era panteísta e ele pensava em “graça” como um tipo de força ou influência que fluía de Deus e era espalhada pelo universo. Essa ideia influenciou Agostinho. De forma semelhante, ele parecia pensar em graça como um tipo de força ou influência ou remédio. Ela fluía particularmente na alma humana vinda de Deus e era a gratia praeveniens (“graça preveniente”), a graça que “chega antes”, garantindo que a alma humana responderia em fé.

Há Muitas “Graças”?

No catolicismo medieval, teólogos desenvolveram o pensamento de muitos tipos diferentes de graça embutidos na alma cristã através de sete sacramentos. O batismo embutia a graça regeneradora em nós. A eucaristia ou a missa embutiam a graça santificadora em nós. A confirmação fortalecia a graça batismal. A penitência era um sacramento que embutia a graça no sacerdote para capacitá-lo a transformar o pão e o vinho no corpo e no sangue de Cristo. O sacramento do casamento embutia a graça no marido e na esposa. A extrema unção embutia a graça na alma cristã para perseverar em meio a enfermidade e morte.

Durante a Reforma, os reformadores protestantes rejeitaram tudo isso como antibíblico. Eles reconheceram somente dois sacramentos: o batismo e a Ceia do Senhor. Entretanto, a linguagem de diferentes tipos de graça sobreviveu. Protestantes como João Wesley continuaram a usar a linguagem tradicional, diferenciando “graça preveniente” de “graça salvadora” e “graça santificadora”. Na visão de Wesley, a graça preveniente nos capacitaria, mas não nos obrigaria a crer.

De certa forma, isso é bíblico: “Pois pela graça sois salvos, mediante a fé” (Efésios 2:8). Mas na Bíblia, a “graça” não é um tipo de agente ou influência ou força, e a Bíblia nunca usa a palavra no plural, deixando a entender que há diferentes tipos de “graças”. Ao invés disso, esse texto diz que foi Deus quem tomou a iniciativa. Não nos salvamos pela qualidade ou força de nossa fé. De fato, não teríamos condições de ter fé se Deus não tivesse tomado a iniciativa de se achegar até nós. Falar da “graça” de Deus não é se referir a alguma “coisa” ou entidade ou substância. É se referir à generosidade de Deus demonstrada em ação. É dizer que Deus tem atuado graciosamente em nosso favor. Talvez seja menos confuso usar o advérbio graciosamente.

As Escrituras não falam de Deus mandando para nós uma “coisa” impessoal ou uma substância chamada “graça” em nós. Ao invés disso, Deus tem atuado pessoalmente. Ele, graciosamente, tem tomado a iniciativa de vir até nós para que pudéssemos responder. Essa é a graça singular de Deus, a “graça de nosso Senhor Jesus Cristo” (2 Coríntios 13:13). E é o Deus Espírito Santo, um com o Pai e o Filho, que trabalha dentro de nós, nos fazendo mudar a direção e irmos ao encontro de Deus ao invés de nos afastarmos dEle em nosso pecado.

Corporativo Antes de Individual

Entretanto, há um ponto mais profundo. Agostinho e os teólogos católicos medievais tinham a tendência de falar de graça como algo que operava através dos sacramentos dentro da alma individual. Então, também, os protestantes, desde a Reforma, têm tido a tendência de pensar em graça dessa forma agostiniana como algo ativo dentro do indivíduo. Na verdade, o protestantismo reflete seu contexto dentro da modernidade que tende a ser altamente individualista.

Entretanto, isso não é simplesmente uma questão de experiência do indivíduo. O trabalho gracioso de Deus não se inicia dentro do indivíduo. Temos que aprender a pensar biblicamente sobre a graça de Deus como a iniciativa de Deus em toda a narrativa da salvação. Quando Deus chamou Abraão de Ur dos Caldeus, isso foi graça. Quando Deus chamou Moisés para libertar Israel do Egito, isso foi graça. Toda a história de salvação é a história da graça. E no tempo oportuno, cumprindo com Sua ação graciosa na história de Israel, Deus enviou Seu Filho para salvar o mundo. Isso foi graça—o Ato Gracioso de Deus.

Graça—que é dizer, a ação graciosa de Deus—não começa quando Deus chama cada um de nós pessoalmente. Antes do Espírito Santo trabalhar em qualquer um de nós ao ouvirmos a mensagem do evangelho, nos arrependermos e crermos, Deus já estava trabalhando na história da salvação. Em Sua ação Graciosa, Deus não meramente chamou indivíduos como Abraão e Moisés, mas um povo. Ele chamou o povo de Israel para ser um corpo corporativo—um reino de sacerdotes. No cumprimento disso, Ele veio na Pessoa de Seu Filho para que Seu povo pudesse ser o Corpo de Cristo unido nEle, o Cabeça.

A graça de Deus—que é dizer, a ação graciosa de Deus—não começa quando a mensagem do evangelho chega a você ou a mim. A ação graciosa de Deus tem sido e é histórica e corporativa. Deus trouxe o clímax da história de Israel quando Ele veio na Pessoa de Seu Filho, não meramente para morrer por indivíduos isolados, mas para morrer por toda a raça humana corporativamente.

A Expiação

Isso nos leva à Expiação. Essa palavra em inglês é “at-one-ment” e foi cunhada por William Tyndale quando ele traduziu pela primeira vez a Bíblia para o inglês. Seu primeiro significado básico é tornar de dois, um—unir, reconciliar. Deus tomou a iniciativa de fazer isso quando Deus e a humanidade foram unidos na Pessoa de Jesus Cristo, a Palavra se fez carne. A palavra “carne” é vitalmente importante aqui. No Antigo Testamento, ela se refere a raça humana como um corpo corporativo: “Toda a carne é erva” (Isaías 40:6), querendo dizer que a humanidade corporativamente é mortal e perece. Então, a Palavra se tornou “carne”, Ele, o próprio Filho de Deus, se uniu, irrevogavelmente, a este corpo corporativo perecível da raça humana. Esse não seria o Ato supremo da “graça preveniente”?

Mas isso não foi a conclusão da ação de Expiação de Deus. A razão pela qual a humanidade estava perecendo corporativamente foi que o nosso pecado tinha cortado o nosso relacionamento com o Deus Criador que era a Fonte de nosso próprio ser. Em nossa loucura suicida, nos rebelamos, rejeitando nosso amoroso Criador para nos tornarmos “deuses”. Ao unir-Se à nossa carne, portanto, o Filho de Deus Se comprometeu a crucificar nossa velha humanidade pecaminosa (Romanos 6:3-11), “Ele mesmo carregou nossos pecados em seu corpo na cruz” (1 Pedro 2:24). A Encarnação tinha que levar à cruz. Como Ele esclareceu, o Filho do Homem tinha que morrer (Marcos 8:31; 9:31).

O ato supremo de graça preveniente de Deus, portanto, não foi simplesmente vir na Pessoa do Filho para Se unir à nossa humanidade corporativa pecaminosa ao se tornar um de nós. Foi também santificar essa natureza humana no Seu próprio corpo sem pecado através de Sua vida de serviço compassivo. Foi Se oferecer como o ser humano representante no supremo ato de amor do Pai, assim completando a expiação[1] entre Deus e a humanidade corporativa.

Já que todo ser humano que já viveu é incluído nessa humanidade corporativa, nos alegramos em cantar com Charles Wesley, “Ele sofreu de uma vez por todos”[2]. Mas precisamos pensar primeiro nisso corporativamente ao invés de invidualmente. Quando Cristo morreu e ressuscitou, toda a raça humana morreu e se levantou corporativamente com Ele e nEle. A cruz mudou tudo. Isso ficou claro na manhã de ressurreição. Pensando corporativamente, a cruz não ofereceu meramente a possibilidade de salvação. Ela, de fato, mudou o relacionamento da raça humana corporativamente com Deus. A Expiação ou reconciliação foi realizada uma vez, por todos. É por isso que podemos confiantemente acreditar que bebês no mundo inteiro através dos séculos estão “cobertos pelo sangue de Jesus”. Mas aqui precisamos ser claros. Infelizmente isso não quer dizer que todo ser humano será salvo. Em Sua graça preveniente, Deus garantiu a salvação para a humanidade corporativamente. Cada cristão pode, portanto, dizer que Cristo morreu por ele ou ela pessoalmente. Como Paulo, podemos nos alegrar “no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gálatas 2:20). Mas já que Deus não nos criou como fantoches para sermos programados, mas deseja nos redimir como seres pessoais completos à imagem de Seu Filho, Ele não forçará Seu amor em nenhum de nós. Isso seria abusivo.

Deus nos chama no evangelho de Seu Filho. E no e com o chamado, vem o Espírito Santo que nos capacita a responder. Isso também é o ato preveniente, gracioso de Deus.

T. A. Noble é professor pesquisador de Teologia no Seminário Teológico Nazareno, em Kansas City, e parceiro de pesquisa senior em Teologia na Faculdade Teológica Nazarena, em Manchester.

Holiness Today, Setembro/Outubro de 2020.

 


[1] No texto original em inglês, aqui ele usa a expressão “at-one-ment” para compartimentar a palavra inglesa para “expiação” passando a ideia de tornar dois em um. (Nota da tradutora.)

[2]. The Poetical Works of John and Charles Wesley (London, 1968) 1:311

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