O Fruto do Espírito nas Letras e na Vida

O Fruto do Espírito nas Letras e na Vida

O Fruto do Espírito nas Letras e na Vida

 Na cultura de gratificação instantânea de hoje, o nosso hábito de leitura bíblica, às vezes, não tem sido muito mais do que uma busca pelas Escrituras de uma frase incisiva que possa trazer um momento de encorajamento. Eu brinco com os meus alunos que esses versículos são “passagens de decalques de parede”. O que eu quero dizer com isso é que há certos versículos na Bíblia que são tão lindos, empolgantes ou memoráveis que eles atraem a atenção e a reflexão quando eles estão sozinhos. Às vezes, transformamos tais versículos em arte de parede ou imagens no feed de nossas redes sociais. Esse hábito é o equivalente espiritual de comer algodão doce: certamente é permitido como um doce ocasional, mas é insuficiente se constituir a única fonte de nutrição.

Os versículos bíblicos não foram escritos para funcionarem em isolamento; eles têm significado e o Espírito os usa para convencer quando apresentados dentro de seu contexto textual, trabalhados com outros versículos e capítulos que os cercam. Eles têm força como pedaços de argumentos mais amplos que comprimem letras, histórias ou poemas, que, quando lidos e discutidos juntos, podem moldar e desafiar comunidades à padrões à semelhança de Cristo. Um versículo isolado de um texto pode, de fato, nos ajudar a nos sentirmos melhores em um dado momento, mas precisamos de mais para nutrir os caros hábitos de fidelidade aos quais os discípulos de Cristo são chamados para ter.

Se há uma passagem que implora para ser um meme inspiracional, ela é Gálatas 5:22-23, onde o apóstolo Paulo enumera “o fruto do Espírito”. Quando extraída do contexto do argumento de Paulo, as características (listadas nos versículos) de uma vida dirigida pelo Espírito de Deus soam como ideias prazerosas e abstratas: amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio. Geralmente lidamos com elas de duas formas. Primeiro, podemos pensar sobre elas como intenções internas, emoções ou atitudes. No âmbito das disposições internas, entretanto, tais conceitos repousam além da possibilidade de observação, patinando bem além de qualquer métrica de avaliação. Simplesmente, não podemos saber com certeza o que está passando dentro da mente e do coração de alguém. Segundo, podemos restringir a lista de virtudes de Paulo na esfera de ideais, algo que aspiramos, mas provavelmente não atingiremos. A afirmação a seguir de Paulo—“Contra essas coisas não há lei” (v. 23b)—nos parece óbvio ou não relacionado. “É claro que ninguém proibiria o amor!”, podemos dizer. Ou, talvez: “O que a lei tem a ver com essas virtudes celestiais?”

O problema é que, a própria metáfora bíblica bem divulgada de “fruto” propõe o oposto das interpretações etéreas [vago, belo-mas-de-outro-mundo]. Fruto (grego, karpos) se coloca na tradição bíblica como o produto bem visível de uma série de circunstâncias invisíveis. A metáfora é adequada: não há forma melhor de testar a árvore frutífera ou a videira do que provar a evidência no tempo de colheita. Da mesma forma, o discurso e as ações de uma pessoa podem revelar um caráter interno que é saudável ou podre.

 Por exemplo, quando Jesus fala do fruto, ele aponta para o exterior, palavras e obras observáveis que constituem evidência da condição interna de alguém. (Mt 7:15-20; Lc 13:6-9; Jo 12:24; 15:1-8). Na bem conhecida parábola do semeador, a palavra para a boa semente que é colhida é karpos (veja Marcos 4:8); as traduções em português usam “colheita” e “fruto” alternadamente para expressar o que significa no termo grego. Independente da tradução que preferirmos, o ensinamento de Jesus é claro, a metáfora é clara: a qualidade da planta, da árvore, da videira ou do solo aparece no fruto que ela(e) produz. Essa imagem era visível no ensinamento de João Batista (Mt 3:8-10; Lc 3:8-9) e continua a ser uma forma pela qual os primeiros cristãos entendiam a presença de Deus a ser manifesta de boas formas na vida dos cristãos (veja Hb 13:15; Tg 3:17-18). Ao escrever para os filipenses, Paulo é capaz de falar de seu próprio trabalho como o que produziu “fruto” e sua expectativa que a congregação fosse cheia do fruto (ou colheita) de justiça entre a própria congregação (1:22, 11). 

Como intérpretes de Gálatas 5:22-23, há muitas boas razões porque nós nos juntamos nesse coro alto de apoio para entender “fruto” como implicando ações externas que mostram um relacionamento correto com Deus. Veja, em Gálatas, antes da nossa passagem, Paulo dedicou um tempo significativo listando as implicações de Deus nos justificar em Cristo (justificação), que vai contra algumas das ações físicas e externas que os gálatas estavam buscando (ex., 3:1-5; 5:2-6). De fato, ler por inteiro a carta de Paulo para as igrejas na galácia pode colocar uma nota claramente azeda em nosso doce pedaço de texto em Gálatas 5:22-23. O tom geral da carta se coloca em contraste com as nossas ideias de “paciência” ou “amabilidade”. Desde os primeiros versículos, não podemos deixar de notar que Paulo estava visivelmente descontente com a forma pela qual os gálatas estavam modificando sua proclamação de Cristo em seu meio (veja 1:6).

Discernir o propósito das leis e práticas bíblicas é o que estava sacudindo o coração de Paulo em relação a esses cristãos gentios. Ele insiste que a inclusão dos gálatas na família de Deus foi graças à própria fidelidade de Cristo, não à observação deles às leis de alimentação ou aos ritos de circuncisão. Paulo argumenta fortemente para persuadir os gálatas a agirem de maneiras que eles reconhecessem que a justificação de Deus só vem através de Jesus Cristo. Seus argumentos são tão veementes que muitos intérpretes cristãos têm entendido que os argumentos de Paulo rejeitam as “obras” completamente, trocando as práticas ultrapassadas em favor da “graça”.

É verdade que Paulo demonstra enfurecimento e raiva pelo fato dos gálatas estarem colocando de lado os pontos essenciais cristãos de graça e fé. Em algumas partes da carta, podemos argumentar que Paulo vê formas corretas de agir como desnecessárias. Mas uma rejeição geral de “fazer o bem” não se encaixa na carta como um todo nem na nossa passagem incômoda no capítulo 5. Em 5:16-26, expressões ativas da presença do Espírito na comunidade—fruto do Espírito—são contrastadas com os custos divisivos da participação nas obras da carne. As alternativas tornam bem claro que Paulo não está descartando a noção de que um relacionamento correto com Deus produz comportamentos visíveis. Ao contrário, temos que interrogar as próprias ações juntamente com sua origem e resultados.

No contexto imediato de nossa passagem, Paulo começa com um par de comandos: “Deixem que o Espírito guie sua vida. Assim, não satisfarão os anseios de sua natureza humana” (5:16, NVT). Paulo depois explica esse par de comandos nos versículos que seguem, que reforçarão que ele está se referindo a modos conflitivos de vida que existiam nas comunidades (v. 17). Paulo contrasta o fruto do Espírito (ho karpos tou pneumatos; 5:22) com as obras da carne (ta erga tēs sarkos).

Algumas das “obras da carne” se encaixam com o tipo de concupiscências e desejos da carne que podemos esperar termos como: fornicação e impureza (v. 19), bebedeiras e festas desregradas (v. 21). Mas outras dentre essas “obras da carne” ilustram que Paulo tinha algo maior em mente quando ele usou “carne” no sentido negativo. Sim, alguns dos termos que Paulo cita se relacionam a prazeres físicos fugazes, mas muito mais, eles se referem a maneiras de priorizar o externo, padrões terrenos de valor, ao invés dos divinos: ciúmes, discórdias, acessos de raiva, ambições egoístas, dissensões (v. 20). A linguagem de obras da carne mostra um exercício e prática gastos na busca de desejos que anseiam por um preenchimento superficial e validação humana. Não são meramente os caminhos óbvios de pecado para validar as preocupações de Paulo com a carne que ele tem em mente aqui, mas também as coisas mais sutis que podemos nos convencer de que são corretas (talvez até na manutenção da lei. Por exemplo o verso de 5:18).

Paulo se refere ao “fruto do Espírito” de forma coletiva (não múltiplos frutos). O fruto é a evidência visível das características forjadas pelo Espírito, não pelo nosso esforço ou habilidade, ao nos mantermos em sintonia com o Espírito. Os verbos que Paulo usa para o relacionamento do cristão com o Espírito estão dizendo: vivam/sejam guiados no (peripateō, v. 16), guiados pelo (agō, v. 18), vivemos no (zaō), e andemos no (stoicheō, v. 25). Esses são termos de ação e movimento; o termo final (stoicheō) é uma metáfora retirada da unidade de frentes de batalha. O Espírito já está trabalhando, e é o trabalho dos cristãos acompanharem o movimento do Espírito. O resultado—que é, o fruto—da atividade do Espírito não é menos visível do que “as obras da carne” seriam. Sua fonte não é o nosso esforço, mas o crescimento do Espírito enquanto as nossas comunidades permanecem na esfera do poder do Espírito.

Comportamentos de crescimento do Espírito não são nem governados pela lei nem podem ser produzidos pela observação da lei. Portanto, Paulo celebra o fruto produzido pelo Espírito de Deus: Seguidores de Cristo, sejam judeus ou gentios, são transformados no próprio padrão custoso de Jesus de amor sacrifical, alegria apesar das dificuldades, ações de pacificação determinadas, paciência duradoura, amabilidade sem preconceitos, bondade generosa, fidelidade inabalável à missão de Deus, cuidado manso e domínio próprio consciente. A morte de Jesus na cruz não livra as comunidades cristãs de sacrifício, como 5:24 deixa claro. Nós que temos uma aliança com Cristo, somos participantes da vida crucificada (o que Paulo tem chamado de estar crucificado com Cristo em outros lugares; Gl 2:19; Rm 6:6).

O contexto de Paulo era muito diferente do nosso, mas sua mensagem aos cristãos gálatas—que estavam distraídos por questões paralelas e negligenciavam o coração do evangelho—pode nos atingir perto de casa. O contraste entre as obras da carne e o fruto do Espírito não é relacionado ao tamanho da colheira, mas à qualidade do fruto que evidencia sua fonte. O Espírito pode nos mover além de nossas zonas de conforto, seja política, econômica ou cultural. Esquemas humanos, sejam de programação ou marketing, não são capazes de fabricarem artificialmente a colheita do verdadeiro fruto que vem da presença do Espírito em nosso meio. Que possamos manter o passo.

Kara Lyons-Pardue

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